Seca extrema em ‘estradas de rios’ da Amazônia exige investimentos em infraestrutura e gera desafios para o transporte e a logística

Transporte de produtos em embarcação sobre o rio Solimões, no Amazonas (Foto: Leandro Tapajós/Lídimo Amazônico)
Os ciclos de subida (enchente ou cheia) e descida (vazante ou seca) dos rios amazônicos têm mudado drasticamente e exigido do poder público e da iniciativa privada ações para enfrentar a crise climática e as estiagens extremas, que podem se intensificar e impactar cada vez mais o transporte fluvial nas “estradas de rios” do Norte do Brasil.
Dragagens, balizamento náutico e construção de portos estão entre algumas necessidades apontadas ante o cenário atual.
“A proteção da Amazônia passa por um investimento em infraestrutura de transporte sustentável”, aponta doutor em engenharia de transportes.
A necessidade de investir de modo planejado nos rios se justifica pelo fato de a região amazônica ter o modal fluvial como o principal responsável pela logística e transporte de cargas e passageiros.

Em 2023, com a maior estiagem dos últimos 121 anos, a descida dos rios afetou diretamente cerca de 600 mil pessoas nos 62 municípios do Amazonas, que declararam situação de emergência.


Para garantir a navegabilidade, durante a seca extrema do ano passado, houve a dragagem emergencial de rios. Ação que gerou despesas na ordem de mais de R$100 milhões, oriundas de verbas federais.
Mesmo assim, as indústrias – responsáveis diretas por mais de 100 mil de empregos no Polo Industrial de Manaus (PIM) –, tiveram sobrecusto estimado em R$1,4 bilhão. Para 2024, a projeção já é de R$500 milhões.
“O rio representa cerca de 60% das cargas que vêm para Manaus. Não só para a indústria, mas indústria e comércio. O rio permite a navegação dos grandes navios que trazem navegação de longo curso, do exterior para Manaus, trazem navegação de cabotagem ou navegação de interior, do Brasil para Manaus. Tem 1% vindo de avião e o restante estima-se que chega pelo modal rodofluvial, também pelos rios, só que em balsas. O risco da seca afeta esses grandes navios”, explica o coordenador da Comissão de Logística do Centro das Indústrias do Estado do Amazonas (CIEAM), e doutor em engenharia de transportes, Augusto Cesar Rocha.

Nova seca extrema
Com possibilidade de mais uma seca extrema, ainda em julho de 2024 a descida acentuada de alguns rios gera preocupação e fez 22 cidades do Amazonas terem declarada situação de Emergência Ambiental.
Toneladas transportadas
De acordo com dados do Estatístico Aquaviário, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), mesmo com a seca histórica, mais de 20 milhões de toneladas de cargas foram transportadas entre julho e setembro de 2023 nos rios amazônicos.

O número corresponde a mais da metade de todo transporte de carga por vias interiores no país, durante o período.


Viagens até 40h mais longas
Além do transporte de cargas, há o intenso transporte de passageiros pelos rios da Amazônia.
Segundo dados divulgados em 2023 pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados e Contratados do Amazonas (Arsepam), responsável por coordenar e fiscalizar o modal, há o registro de 136 embarcações no transporte regular de cargas e passageiros em 116 linhas/destinos no Amazonas.

Ao todo, essas embarcações registraram mais de 56 mil passageiros em julho de 2023.
Ainda segundo a Arsepam, em outubro, durante a seca extrema, 90% das embarcações operaram com algum tipo de restrição em razão do calado.
Com isso, embarcações das linhas regulares não conseguiram chegar até as sedes dos municípios e rotas foram alteradas.

Desta forma, os passageiros tiveram mais despesas ao precisar custear o transbordo de suas bagagens e cargas, ao mudar para embarcações menores para conseguirem chegar aos destinos desejados.
À época, a Arsepam informou que aumentou em até 40 horas a duração das viagens para algumas localidades mais afetadas pela vazante.
(A redação do Portal Lídimo Amazônico procurou a assessoria da Arsepam para verificar a atualização dos dados em 2024, mas não obteve resposta até a data da publicação).
Problemáticas para o transporte
Com a estiagem recorde, fica reduzido (em alguns pontos até paralisado) o uso de embarcações para transporte de passageiros, cargas e mercadorias, além de atividades turísticas (como o trânsito de transatlânticos oriundos de outros países).


Desafios para embarcações regionais
O ativista defensor da causa animal e atual presidente da Comissão do Meio Ambiente da Câmara Municipal de Manaus (CMM), Kennedy Marques, também acumula experiência como empresário da navegação, com transporte de mercadorias e passageiros principalmente pelos Rios Negro, Amazonas e Madeira.
“Navegar nos rios da Amazônia é um desafio muito forte, muito árduo. Cada rio tem suas peculiaridades”, destaca.

O atual vereador de Manaus cita como principais desafios para quem trabalha com a navegação pelos rios amazônicos questões de ordem ambiental e econômica:
- existência de bancos de areia;
- pedras submersas;
- elevação dos custos das viagens durante a seca;
- ausência de portos e infraestrutura na capital e interior.

“O rio Madeira, considerado jovem, tem suas características. Durante a seca, um grande risco são os bancos de areia que se mudam constantemente. Principalmente pela exploração de ouro com dragas, que modifica o curso. O rio Negro, que é extremamente largo e com bancos de areia, se não tiver um balizamento [sistema de sinalização] ou presença do prático, não se consegue navegar. Já o rio Amazonas é extremamente largo. Mas, durante a seca, até mesmo navios de grande porte podem enfrentar dificuldade”, explica.
Possibilidades
Com esse cenário, durante as secas dos rios, Marques aponta como possibilidade a criação de um plano para estimular a criação de empresas que atuem com navegação de embarcações que exigem pequeno calado nos interiores.

Desta forma, a ampliação desse tipo de transporte durante a vazante poderia ajudar a diminuir o isolamento de algumas comunidades e viabilizar a chegada de passageiros e mercadorias enquanto embarcações maiores ficam impossibilitadas de trafegar.
Outras soluções apontadas para melhorar a navegabilidade nos rios amazônicos são a dragagem planejada, retirada de pedras submersas, balizamento fluvial e novos portos.
“Não só a capital, mas todo interior precisava receber portos adequados localizados de forma que pudessem favorecer durante a cheia e a seca. E todos os rios, as calhas dos rios de modo geral, precisavam ser balizados, outros dragados. Inclusive alguns locais onde tem pedral, que é algo que está lá todos os anos, que não muda de posição, poderiam ser dinamitados. No rio Madeira, por exemplo, tem vários pontos onde existem pedrais que são perigo durante a seca e a cheia. Se não fossem os práticos muitas embarcações vinham a pique por conta desses obstáculos”, disse.

Planejamento e desafios para a Indústria
De acordo com o coordenador da Comissão de Logística do Centro das Indústrias do Estado do Amazonas (CIEAM), Augusto Cesar Rocha, a existência de grandes secas gera impactos na logística, mas não apresenta um risco para a continuidade das indústrias do Polo Industrial de Manaus.
“O volume de indústrias que param de produzir é muito pequeno. A gente identifica 3% de indústrias que de fato, de alguma maneira, erraram no seu plano de produção ou então programaram suas paradas planejadas para essa época. Há as duas condições: tanto o erro, quanto o planejamento para ficar parado. Isso significa que as indústrias de fato não param. Elas fazem estoque adicional para enfrentar a seca, elas fazem trânsito alternativo com aviões para enfrentar a seca. Há caso de empresa que trouxe dois aviões do Panamá para Manaus para enfrentar a seca. O fenômeno de seca não é só na região amazônica. O Canal do Panamá passa por esse evento extremo. (…)As empresas continuam operando. A questão é que sobe o custo operacional decorrente da logística”, explica Rocha.
Exemplo da continuidade da operação mesmo durante a seca extrema é setor de duas rodas do PIM, que registrou dados positivos em 2023.
Números positivos
Segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo), as fabricantes de motocicletas instaladas no PIM produziram 1.573.221 unidades em 2023.
O volume é 11,3% superior ao registrado em 2022 e representa o melhor resultado anual alcançado desde 2013.
“Tivemos um primeiro semestre bastante positivo, acima do esperado. Porém, temos pela frente um segundo semestre bastante desafiador, principalmente com a previsão de uma estiagem ainda mais severa do que a no ano passado, onde já foram sentidos os reflexos diretamente na produção de motocicletas em Manaus”, explica Marcos Bento, presidente da Abraciclo.
Infraestrutura para sustentabilidade

“A proteção da Amazônia passa por um investimento em infraestrutura de transporte sustentável. Isso aqui não é feito. (…) O que interessa para a indústria da Zona Franca de Manaus, e para a sustentabilidade da Amazônia, é a correção das deficiências históricas de infraestrutura”, disse Rocha.
O coordenador da Comissão de Logística do CIEAM também aponta como necessidades para logística na Amazônia:
- estruturação do modal aéreo com aeroportos no interior;
- portos no interior;
- melhorias na estrutura portuária em Manaus;
- hidrovia com calado garantido para passar trânsito de embarcações de maior porte;
- rodovia BR-319 com garantia de proteção da floresta ao longo de todo seu percurso.
Impactos no Turismo
Se as indústrias do PIM conseguem manter a produtividade mesmo ante os desafios da seca, o mesmo não ocorre com o setor do turismo, que gerou receita de R$ 942 milhões com mais de 381 mil visitantes ao estado em 2023, segundo dados da Empresa Estadual de Turismo (Amazonastur).

Passeios fluviais, visitas à comunidades, balneários, flutuantes, hoteis de floresta e passeios até atrativos naturais (como o Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões) são diretamente impactados com a descida dos rios em grandes secas.
É o que destaca Carlos Cesar, que trabalha há 15 anos com vendas de passagens fluviais, em uma agência de turismo homônima, localizada ao lado do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, no Centro de Manaus.
Ele relembra que a seca extrema de 2023 afetou o turismo, por tornar mais difícil o acesso às localidades no interior e aumentar os custos das viagens, que não chegaram a ser repassados aos consumidores.
(A redação do Portal Lídimo Amazônico procurou a assessoria do Governo do Amazonas para buscar dados oficiais sobre os impactos da seca extrema de 2023 no Turismo, mas os questionamentos não foram respondidos até a data da publicação desta reportagem.)
Segurança e pirataria nos rios
Outro ponto que merece atenção em caso de seca extrema é a atuação dos piratas dos rios, que conseguem acessar grandes embarcações com maior facilidade durante a vazante.
Um dos alvos de piratas dos rios amazônicos é o combustível. A principal suspeita é que ele seja usado para abastecer o garimpo ilegal.
“As rotas fluviais de maior porte são as dos Rios Amazonas-Solimões, Negro, Tocantins e Madeira. Essas rotas têm sido alvo da ação de grupos de piratas atuando no roubo de cargas de combustíveis, causando grandes prejuízos às empresas do ramo do petróleo. Sendo assim, para garantir cargas, tripulações e embarcações, faz-se necessária a contratação de segurança privada”, cita trecho do “Manual de Boas Práticas para Proteção de Comboios Fluviais que Transportam Combustíveis”, publicado pelo Instituto Combustível Legal.
A publicação aponta a necessidade de controle e maior segurança para embarcações de transporte de combustíveis nos trechos entre Humaitá e Manaus, no Rio Madeira, e no trecho entre Itacoatiara e Parintins, no Rio Amazonas.
Busca por Soluções – Licitação para Dragagens
Em junho, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), em conjunto com o Ministério dos Transportes e o Ministério dos Portos e Aeroportos, anunciou o lançamento dos editais de licitação para execução de serviços de dragagem para garantir a navegabilidade dos rios Amazonas e Solimões durante a estiagem. Ações do Plano de Dragagem de Manutenção Aquaviária (PADMA).
O investimento previsto para infraestrutura nos rios é de cerca de R$ 500 milhões, por cinco anos.
Esse montante será utilizado para a contratação de empresas que realizarão os serviços de dragagem e supervisão nos quatro trechos: Rio Amazonas (de Manaus a Itacoatiara) e do Rio Solimões (de Coari a Codajás, Tabatinga a Benjamin Constant, e Benjamin Constant a São Paulo de Olivença).
Segundo o DNIT, a expectativa é de início dos serviços no segundo semestre de 2024.
Busca por Soluções – Píer provisório
Um píer flutuante provisório com dimensões de 180 metros de comprimento por 24 metros de largura deve ser instalado na Enseada do Rio Madeira.
A iniciativa é do Grupo Chibatão em parceria com a Marinha do Brasil, Cieam, DNIT, Antaq, Sedect, Receita Federal, Praticagens e Suframa.
Segundo informações do Grupo Chibatão, o píer flutuante provisório deverá funcionar de setembro a dezembro de 2024, cobrindo o período crítico da estiagem na região.

O objetivo é auxiliar nas operações de transbordo e transferência eficiente de cargas para balsas, caso não haja profundidade suficiente para a navegação até Manaus durante a seca de 2024.
Novos desafios em 2024
Em 2024, órgãos ambientais, governos, empresários e ribeirinhos já se mobilizam para enfrentar mais uma grande seca. Fato que mais uma vez forçará mudanças e ações no setor de logística e transporte fluvial.
Emergência
Desta forma, no início de julho de 2024, foi criado o Comitê de Enfrentamento à Estiagem no Amazonas.
Além disso, o governo do estado assinou um decreto de situação de Emergência Ambiental em 22 cidades do sul do Amazonas e Região Metropolitana de Manaus.
Já foi decretada situação de emergência em cidades das calhas: do Juruá (Guajará, Ipixuna, Envira, Itamarati, Eirunepé, Carauari e Juruá); Purus (Pauini, Lábrea, Tapauá, Beruri, Canutama, Boca do Acre); Alto Solimões (Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins).
Declaração de escassez
Já a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) publicou no Diário Oficial da União as resoluções nº 202/2024 e nº 203/2024 que declaram situação crítica de escassez quantitativa dos recursos hídricos no rio Madeira (RO/AM) e no rio Purus (AC/AM).
Duas importantes usinas hidrelétricas estão localizadas no rio Madeira: Jirau e Santo Antônio. O rio Madeira serve, ainda, como importante hidrovia usada para transporte fluvial de carga e passageiros, com trecho navegável de 1.060km entre Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM).
Por outro lado, a bacia do Purus cobre aproximadamente 368.000km² e se localiza dentro dos limites territoriais do Brasil e Peru, com foz no rio Solimões entre os municípios amazonenses de Anori e Beruri.
De acordo com a Defesa Civil, os níveis dos rios em todas as calhas do Amazonas estão abaixo do esperado para o período, se comparado a anos anteriores.
O nível de cada um dos rios pode ser conferido pela internet, no site Painel do Clima.
Ações para Futuro da Amazônia
O projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de pesquisadores brasileiros com a contribuição de mais de 80 estudiosos de diversas instituições regionais, nacionais e internacionais, foi criado para propor soluções para impulsionar o desenvolvimento econômico, social e ambiental da Amazônia brasileira.
As sugestões foram reunidas em um livro digital, intitulado “Amazônia 2030: bases para o desenvolvimento sustentável”.
De acordo com dados da publicação, é preciso priorizar a conservação da floresta com ganhos sociais e econômicos.
“A zona Amazônia florestal precisa melhorar a sua infraestrutura sem promover a abertura de novas estradas (modelo tradicional), pois este tipo de empreendimento catalisa a ocupação desordenada, conflitos sociais e desmatamento. Neste caso, as soluções para os desafios de acesso e logística precisam estar apoiadas na ampla rede de rios navegáveis da região com melhorias no transporte fluvial”.
Ainda segundo os dados, a realidade amazônica também deve incluir:
- bioeconomia;
- investimento em pagamentos por serviços ambientais com foco em REDD+ (mecanismo para utilizar incentivos de mercado e financeiros visando a redução das emissões dos gases do efeito estufa gerados pelo desmatamento);
- eletrificação e redução do uso de energia fóssil;
- infraestrutura de internet banda larga;
- melhor arborização e urbanismo em áreas urbanas;
- acesso à saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de água;
- fomentar áreas de lazer e cultura;
- investir em qualificação profissional.
Enquanto todas essas ações não se tornam realidade, resta ao povo amazônida fazer igual a Carlos Cesar, vendedor de passagens que trabalha na orla do rio Negro: observar a subida e descida dos rios esperando por secas menos severas que gerem menos impactos nas vidas de “irmãos ribeirinhos do interior”.

Reportagem, pesquisa e edição: Leandro Tapajós
Infográficos: Paulo Dutra